sábado, 21 de outubro de 2017

12 – março – 2010

Diante da tela ele descansa. Diante da página ele viaja, transpõe os próprios limites. A água do chuveiro desce suave, de olhos fechados deixa-se ao devaneio líquido. A sujeira descendo. Sente ele em si indo pro esgoto, tala qual intimidade quente e avassaladora. Sem transeuntes, sem vozes, nada de cotidiano, apenas ele e os canos sujos, indo misturando-se com todo o resto até ser uma massa difusa sem distinção, quem sabe morte, quem sabe nada. Deita-se pesado. Uma pedra, um bloco, um peso no peito, o ar cada vez mais rarefeito, espera o sono, chega a passos lentos, telhados dissolvendo-se, escuridão que abunda e abraça tudo. A palavra soa, ninguém entende, música inebriante que surge do nada. A poça de lama no quintal exala um odor nauseabundo. Acocara-se perante a poça, o que vê é terrível; porque até pro belo é terrível contemplar-se, no caso dele é diferente sem ser, pois sabe muito bem que a feiura é o que lhe veste. Marasmo total. Joelhos doem. Levanta-se com dificuldade. Zonzo. Caminha de volta ao casebre como se fosse um passeio final ao cadafalso. E dentro da enorme caixa de aço que desliza pelas ruas, a pele, o corpo roça, choca-se e sente vindo das bocas, das axilas, dos cabelos, das genitálias, miríades, galáxias, nuances, rastros que deleitam, dão nojo, as papilas reagem, uma batalha estar e permanecer em pé. E quando desce não sabe pra onde vai. Ruas desertas. Praças sujas. Janelas vazias. Estranha sensação de ser o único que realmente está vivo. O que fazer numa rua de portas fechadas? Tentar ouvir? Tentar sentir o que há lá dentro? Encosta o ouvido na parede mas não consegue captar nada. A copa das árvores da praça emitem um som, quase uma canção. Senta-se no meio-fio, cospe no asfalto quente. Engole seco. Lê e então entende. Escuta o agouro. Limpa o suor da testa. Anda. Continua.